De todos os cantos da Bacia do Rio São Francisco vimos nos encontrar em Carnaíba do Sertão, município de Juazeiro - BA. Somos 108 pessoas de 43 organizações sociais e movimentos populares – indígenas e quilombolas, pescadores e vazanteiros, lavadeiras e agricultoras, camponeses de fundos e fechos de pasto, estudantes, educadoras, artistas e operários, lutadores e lutadoras do povo. Conosco se somam a Frente Cearense e a Frente Paraibana no enfrentamento da malfadada transposição, além de companheiros de Brasília, Recife, Aracaju, Mossoró, Alemanha e Holanda, e o presidente do Comitê da Bacia. Trouxemos as marcas da degradação ambiental, social e humana que se abate sobre a Bacia do São Francisco nestes últimos 50 anos de avanço avassalador do capital. Com alegria e ânimo partilhamos nossas experiências e conquistas na defesa da vida, de nossos direitos, das terras e águas, das plantas, animais e gentes do São Francisco.
Neste II Encontro Popular da Bacia do São Francisco, fizemos o balanço de quatro anos da Articulação Popular do São Francisco, que congrega em torno de 300 entidades. Traçamos nossos planos de continuidade e avanço nos próximos dois anos. Indignados, denunciamos os crimes sociais e ambientais que se multiplicam atualmente num reciclado e retrógado surto de desenvolvimentismo – caso do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) do governo federal. E partilhamos as esperanças e vontades renovadas em barrar a expansão desta engenharia e desta cultura de morte, ao mesmo tempo construindo um projeto popular de vida abundante e paz, em harmonia com o cosmos.
Vários relatos durante o encontro constatam que a exploração e a degradação aumentam. O agronegócio se alastra na onda dos agrocombustíveis, mesmo com a extinção de mananciais, perda de solo e assoreamento. A mineração, antes concentrada na região do Alto São Francisco, agora se generaliza em toda a Bacia. Novas barragens estão sendo construídas e muitas mais planejadas, nos afluentes e na calha principal, agravando o quadro de um rio refém do setor elétrico. O capital globalizado se faz surdo aos cada vez mais evidentes sinais da natureza e apelos da ciência, de que é urgente rever o modelo de civilização. O São Francisco perdeu 25% de suas águas nos últimos 50 anos e poderá perder o mesmo tanto nos próximos. Porque se insiste em exportá-las em forma de energia, frutas, grãos, etanol, minérios... Isto tem que parar.
As vítimas imediatas deste processo são as populações impactadas, em especial os pobres, as comunidades tradicionais da ribeira, do cerrado, da caatinga e da mata atlântica da Bacia – indígenas, quilombolas, pescadores, vazanteiros, moradores de fundos e fechos de pasto – e das periferias urbanas. Ainda e sempre precários em suas terras e territórios estão à mercê do modo autoritário e desrespeitoso das empresas e governos, que pouco difere do tempo da Ditadura Militar. Assim está acontecendo também o desalojamento de populações nos eixos da transposição, no CE, PB e PE. Muitos sem condições de permanecer migram para as cidades e tentam sobreviver no subemprego e à violência crescente, como nas regiões de Juazeiro e Petrolina. Isto tem que parar.
São elas também as que resistem e nos animam a lutar. Territórios têm sido defendidos (Barra da Parateca – BA) e retomados (Trukás – PE, Tumbalalá – BA e Xakriabás – MG), as comunidades recuperando suas culturas antigas e mais adequadas ao convívio fraterno e à harmonia com o meio-ambiente. Projetos têm sido impedidos: barragens (Gatos e Sacos, Pedra Branca e Riacho Seco - BA), incineração de lixo (Camargos - MG), mineração (Serra da Piedade –MG), irrigação de cana (Areia Grande – BA), turismo (Brejo Grande – SE), piscicultura (MOPEBA – BA). Afluentes têm sido revitalizados, como o dos Cochos (MG).
São elas também as que, em parceria com os movimentos sociais e ambientalistas da Bacia e do Nordeste Setentrional, têm feito a luta contra a transposição do rio São Francisco. Este projeto em obra pelo exército há um ano e meio não avançou mais que 4,9% (eixo norte) e 6,9% (eixo leste) e tem contratos superfaturados como denuncia agora o Tribunal de Contas da União. A revitalização, sem visão de conjunto, focada no esgotamento sanitário, não leva em conta a queda da quantidade da água. E ignora a devastação pelo agronegócio nas regiões das nascentes no Cerrado.
O cerne de toda a nossa luta é o Projeto Popular para o São Francisco Vivo – Terra e Água, Rio e Povo, tema do nosso II Encontro, construção que se perde no tempo, mas se acha hoje mais que nunca pertinente aos desafios globais da crise ecológica e econômica e é resposta contundente ao desatino do desenvolvimentismo neoliberal. Nosso projeto é abrangente, plural e inclusivo, e se faz na prática, com protagonismo popular, diálogo com os saberes tradicionais dos povos e o conhecimento da ciência, intercâmbio de experiências no campo e na cidade, defesa e conquista de territórios, reforma agrária e regularização das terras públicas em favor das comunidades, fortalecimento da agricultura familiar camponesa agroecológica, soberania alimentar e energética, recomposição de matas ciliares, proteção de nascentes, moratória para o cerrado, convivência com o semi-árido, vazão ecológica, defesa da agrobiodiversidade, despoluição, impedimento de projetos degradantes, emprego decente, segurança pública, educação contextualizada, comunicação livre, afirmação cultural... Utopia? É, e é isso que tem faltado em nosso país e no mundo: a retomada do rumo, que só é alternativa real se for socialista com preocupação ecológica e não arremedos de um “capitalismo verde”.
Aos pré-candidatos à próxima eleição presidencial desde já cobramos clareza de posições a respeito destas questões. É o que vai nortear nosso voto. Mas o verdadeiro poder popular construímos na luta organizada que ocupa os espaços políticos da sociedade e os livra dos corruptos e corruptores.
Apelamos a todas as pessoas de boa vontade a se juntarem a nós. A prioridade comum deste momento é a Campanha Opará (www.saofranciscovivo.com.br) que os povos indígenas do São Francisco lançaram para pressionar o Supremo Tribunal Federal a julgar ações contra a transposição, em defesa de sua soberania e a de seus territórios agredidos pela obra.
Das caatingas de Carnaíba do Sertão, das ribeiras dos pescadores e lavadeiras do Angaris, em Juazeiro da Bahia, vislumbramos um longo e árduo caminho pela frente, tal qual o Velho Chico – Opará – Rio-Mar enfrenta e nos ensina e convoca a enfrentar. “Melhor morrer do que perder a vida”, dizia Frei Tito Alencar. Melhor mesmo é “a alegria de ser mar”, canta Bené Fontelles. São Francisco Vivo, Terra e Água, Rio e Povo.
Rio São Francisco, 23 de agosto de 2009.
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