Wednesday 4 November 2009

VALE: Uma esfinge

por Lucio Flavio Pinto *

fonte: Adital


Se a antiga Companhia Vale do Rio Doce se transformou num monstro, como diz o presidente Lula, os governos do PSDB e do PT agiram como o médico criador, para usar a simbologia da literatura. Só mudar o presidente da companhia ou incrementar seus investimentos nada muda. Talvez apenas os recursos não contabilizados das eleições

Em 1997, o governo federal vendeu o controle acionário da Companhia Vale do Rio Doce por um valor que equivale a quatro vezes menos do que o lucro, de 13,2 bilhões de dólares, que a empresa obteve apenas no ano passado. Talvez nenhuma outra empresa privada haja registrado tanta lucratividade em todo mundo quanto a ex-estatal durante esta primeira década do século XXI. Nos onze anos que se seguiram à privatização, seu lucro líquido cresceu 29 vezes. Seu valor de mercado passou de US$ 8 bilhões para US$ 125 bilhões. Em 1997 tinha cerca de 10 mil empregados: estava azeitada depois do "enxugamento" de pessoal promovido - a suas expensas - pelo governo federal, antes de leiloá-la. Hoje, a Vale conta com 60 mil empregados. É a maior empresa privada do continente, a que mais exporta a partir do Brasil e a que mais investe no país. De cada 10 dólares líquidos de exportação, dois resultam da contribuição da empresa para as reservas nacionais, que alcançaram tamanho nunca antes registrado.

Esses números ajudam a entender a posição contraditória do país em relação à Vale e o perfil confuso da companhia. A privatização não foi um negócio limpo e muito menos rentável para o Brasil. Mesmo naquele ano de 1997, quando a litania das privatizações era entoada em coro quase uníssono e o mundo era induzido a só contemplar o lado glamouroso da globalização, e a despeito de toda a propaganda do governo Fernando Henrique Cardoso sobre as vantagens de pôr fim à condição estatal da companhia, a rememoração do episódio sempre deixa um gosto amargo no paladar da opinião pública.

Já não há mais dúvida que a alienação de 53,9% das ações ordinárias da companhia, se inevitável ou desejável, podia ser feita por um valor muito maior, sem que esse valor deixasse de ser plenamente de mercado. Analistas europeus calcularam em pelo menos três vezes mais o preço justo na ocasião. Como quase sempre acontece nessas situações, ao menos no Brasil, se a sociedade deixou de tirar as vantagens possíveis e justas do negócio, alguém saiu lucrando mais - e de forma oculta.

A reorganização societária da Vale também teve um componente de carta cifrada, de ardil. Através de vários esquemas participativos, o governo continuou a ser o maior acionista: por um caminho mais direto, através do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social); pelo mais tortuoso, através dos fundos de pensão de empresas estatais, à frente a Previ, do Banco do Brasil. Essa preponderância, entretanto, se realiza por meio de suporte institucional e aporte financeiro, mas não por deliberação ativa nas decisões da corporação. O governo jamais utilizou a ação especial, a golden share, que talvez lhe possibilitasse ajustar a condução da empresa a uma política pública específica para cada momento ou situação da trajetória da Vale. Se possuísse essas políticas setoriais.

O controle efetivo da empresa é do Bradesco, que só tem 21% da Valepar, o consórcio que possui 53,9% do controle da Vale (enquanto a Litel, que é dos fundos, tem 49% nesse consórcio estranho). O Bradesco, por ter formulado o modelo de privatização da CVRD, não podia participar da empresa, conforme as regras definidas pelo próprio banco. Mas não só participa como mantém o presidente, Roger Agnelli, no cargo desde 2001. A Mitsui, principal parceira privada japonesa na mineração, siderurgia e metalurgia no Brasil, tem 18% da Valepar, embora não pudesse entrar na Vale por ser sua cliente, outra cláusula restritiva do leilão de venda que também se tornou letra morta.

Essas cascas de banana - e vários escaninhos sombrios que surgiram com a privatização e se mantiveram até agora - lançam suspeitas sobre a Vale. Dúvidas e ressentimentos que nem o maciço trabalho de marketing e relações públicas consegue eliminar. A Vale é temida ou mesmo admirada, mas não gera confiança, não é permeável à opinião pública, arrogante e auto-suficiente como seu principal executivo. Parte considerável da sociedade recebe com reservas suas palavras, submetendo-as a checagem. Uma das conclusões dessa avaliação é que a Vale precisa mudar.

Mas não como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer que ela mude. Muitos não concordam com os métodos de Roger Agnelli. Sua presença à frente da empresa não é um dado secundário. Pelo contrário. Ninguém, melhor do que ele, expressa a filosofia da Vale privatizada: a busca do crescimento acelerado (quase descontrolado), prioridade aos grandes acionistas, maximização da rentabilidade (não só em função de melhor processo produtivo, mas também de menores investimentos sociais), recordes de dividendos e uma visão de curto prazo dos negócios, insensível às repercussões sociais e regionais. Além de muita dose de fantasia através da propaganda.

Não há dúvida que a Vale não teria crescido tanto se não tivesse no seu comando um executivo com o dinamismo e a pertinácia de Agnelli. Para alcançar metas quantitativas impressionantes, porém, ele passou por cima da mística corporativa da estatal e dos compromissos que ela tinha (a despeito de suas distorções) com os locais nos quais atua e sua gente. Sua governança é marcadamente financeira, exclusivista e impetuosa demais, sacrificando perspectiva de mais largo prazo e cautelas. Avançando sobre graus crescentes de risco com base na sua reserva de caixa, com liquidez de 22 bilhões de dólares (contra uma dívida internacional crescente).

O gigantismo da Vale não seria perigoso se ela fosse uma empresa rigorosamente privada. Mas ela é um híbrido, sem previsão exata nos dicionários de economia ortodoxa ou nas regulamentações jurídicas pertinentes. Ela recebeu integralmente um acervo de recursos naturais e meios de logística que um Estado não passaria a uma empresa privada (nova ou de origem) sem abdicar de parte da sua soberania nessa transferência. No caso da Vale, não foi só de ativos, mas, em função do seu conjunto e do seu significado, também de poder.

O dano foi ampliado pela "multinacionalização" da Vale, em cujo escopo o Brasil já não tem a mesma ênfase de sua sede, a não ser como a fonte de procedimentos atrasados em relação ao padrão de alguns países mais adiantados onde a ex-estatal se instalou - e nos quais já está provocando crises, bem ao gosto brasileiro. Ao se internacionalizar, a Vale, ao invés de absorver os melhores procedimentos do Primeiro Mundo, em cujo círculo íntimo penetrou (ou dele se aproximou), levou para lá as sobrevivências antediluvianas do Terceiro Mundo, como a exploração da mão-de-obra, por vários meios, inclusive os aparentemente inovadoras (como a terceirização, levada ao paroxismo). Os conflitos no Canadá, onde a Vale se estabeleceu, ao adquirir a maior produtora de cobre**, a Inco, indicam que essa migração não será pacífica. E pode não ser bem sucedida.

Esse hibridismo da Vale como ex-estatal e quase-privada acarreta (ou acentua) equívocos, como o da ofensiva do Palácio do Planalto sobre a empresa. Se o presidente da república não concorda mais com os métodos do presidente da Vale, do qual até ontem era amigo de infância adotivo, que chame os prepostos do governo federal e com eles formule uma proposta a ser submetida à assembléia geral da companhia, conforme suas normas internas. O que não pode e não deve é criar um palanque para tratar dessa reorganização administrativa. Por ser um local inadequado, seu maior efeito será o de deteriorar a imagem e o valor da empresa, que, como uma sociedade anônima, operando largamente na bolsa de valores (inclusive a de Nova York), vai perder dinheiro por causa desse procedimento inadequado (e caprichoso).

O afastamento de Roger Agnelli da presidência da Vale pode retocar a face da empresa, expurgando erros agravados pelos métodos marcantes do representante do Bradesco na sociedade, mas não modificará substancialmente nada. Agnelli conseguiu se equilibrar no fio só lâmina do seu cargo e o governo voltou ao seu lugar depois que ele anunciou os investimentos que o presidente insistia que a Vale deveria adotar. Mas, em boa medida, toda essa pantomima se revelou jogo para arquibancada, uma vitória de Pirro numa batalha de Itararé, se a cosmogonia do presidente pode captar a sugestão. Exatamente porque tudo mudou para que nada mudasse.

A Vale aumentou o valor do investimento previsto para 2010 e garantiu que a pérola da coroa será mantida, a implantação da sua primeira aciaria no Pará. É esta a batalha de Itararé da candidatura da ministra Dilma Rousseff à sucessão de Lula. A candidata pode agora exibir como troféu de conquista o que podia parecer não mais do que butim para o famoso fundo de campanha com recursos não-contabilizados, que imortalizou a metodologia financeira do PT na historiografia nacional.

Todas as quatro siderúrgicas anunciadas, porém, já integravam o portfólio de investimentos da Vale (ver Jornal Pessoal 450). O que estava pendente era a convicção de que alguns dos seus itens não fossem apenas para épater le lulisme e circundantes. Agnelli apregoou - e Lula e Dilma confirmaram - que agora o compromisso é para valer, não mais para engordar a massa de manobra de Agnelli (desde que as ressalvas, envolvendo a inação ou desarticulação do poder público na logística de apoio, sejam atendidas). Mas como se pode conferir a evolução? Onde estão os números? Quem apresentou as contas de chegada?

Toda a tratativa em torno do tema se manteve no conciliábulo dos poderosos. Depois de muita verborragia, eles emergiram dos seus escaninhos com o tratado assinado nas mãos (como a tábua das leis de Moisés) para cobrar o aplauso do distinto público, mantido à distância pelos centuriões palacianos ou colocado na roda da desinteligência pela grande imprensa nacional. É para pegar ou largar, não para ler, estudar, conferir e concluir. Como a iniciativa do presidente da república, na sua ofensiva contra o presidente da Vale e pela verticalização do processo produtivo da empresa, foi política, fora das normas de procedimento existentes para esse tipo de situação, o acerto também foi político. Com isso, mais cinzento se tornou o tom de uma empresa que foi mal privatizada e esteve sujeita a voltar a um status quo ante pior.

Podia ser inimaginavelmente péssimo se o mega-especulador Eike Batista, o filho do estrategista Eliezer Batista, tivesse sido imposto, composição societária adentro, pelo governo e seus partidários. Eike não é exatamente do ramo produtivo da economia: é um fomentador de negócios à base de informações valiosas, que uns podiam chamar de privilegiadas e outros de bem fundamentadas. Alguns disseram que ele apresentou proposta de compra das ações do Bradesco insuflado pelo Palácio do Planalto, para dar um susto no banco e no seu protegido, mais do que para consumar um negócio. Outros sustentam que, à parte esse componente, houve outra motivação na iniciativa: o interesse contrariado do empresário ao tentar uma composição com a direção da Vale, para fazer o que mais sabe fazer, que é passar em frente ativos (reais ou fictícios), com fabulosa margem de lucro pela intermediação.

Mas também seria pior do que antes se para o novo perfil da companhia tivesse sido decisivo um acerto de bastidores, por debaixo dos panos, no qual haveria mútuas compensações para que o rumo continue a ser o mesmo, embora pareça novo. Certamente a manutenção de Agnelli custará muito mais do que os 180 milhões de reais de injustificados (pelos critérios comerciais) gastos em massiva propaganda através da imprensa em um ano, para contrapor às críticas do governo os argumentos da empresa.

A Vale é uma questão grave e grande demais para ser tratada com passionalismo e voluntarismo. Claro que o poder da vontade é importante e pode ser decisivo em alguns momentos. Foi assim que Getúlio Vargas arrancou dos americanos nossa primeira siderúrgica, a de Volta Redonda, aproveitando-se dos compromissos estabelecidos em função da segunda guerra mundial. Talvez outro presidente não tivesse tido a iniciativa ou não a consumaria. Os americanos é que não iriam oferecer esse alto-forno aos brasileiros por vontade própria. O elemento volitivo de um cidadão pesou nesse fato, como também houve tal componente (por parte de D. Pedro II e do engenheiro francês Gorceix) na instalação da nossa primeira escola de minas, em Ouro Preto, há mais de 150 anos.

Mas a realidade dos nossos dias não é propícia ao pleno êxito de tal voluntarismo, que constitui uma das marcas principais do presidente Lula, sob o influxo de sua estrela e as bênçãos dos deuses do Olimpo, para os quais é "o cara". O que ele quis no grito só é possível através de um esforço sistemático, profundo e bem avaliado. A Vale precisa mudar - e mudar o mais rápido possível. Mas num processo público, com os números expostos à mesa e debate intenso. Para que a Vale mude é preciso que mude todo modelo econômico, cujas origens estão na administração Collor, enfatizado por FHC e mantido substancialmente por Lula.

A Vale representa a blitzkrieg por dólares, apoiada pela Lei Kandir, que, não por coincidência, entrou em vigor no ano da privatização, proposta por um paulista, tão paulista quanto FHC e Lula, no que interessa: suas inspirações e seus atos. Os dólares vieram como nunca, muito mais do que recomendava uma interpretação correta dos acontecimentos internacionais. Na prancheta montada com base na especialização do Brasil como país exportador, era mais negócio produzir alumina do que alumínio ou minério de ferro do que aço. O Brasil venceu batalhas comerciais importantes e, estimulado por essas vitórias, deixou-se seduzir pelo paroxismo do câmbio, ignorando as necessidades existentes dentro do país e abstraindo os efeitos nocivos desse voltar-se para fora.

Essa Vale monstruosa, que só pensa em números, cifrões, negócios, dividendos e outros valores quantitativos não é produto apenas - nem principalmente - de Roger Agnelli, mas de FHC e de Lula, por sua vez agentes de protagonistas que não se apresentam sob nomes humanos, de indivíduos. O Brasil que se impôs ao mundo como vendedor excepcional de recursos naturais, na forma de commodities ou não, se continuar nessa direção vai se tornar cada vez mais um país desigual, injusto, explosivo para quem não foi chamado a entrar no clube do paraíso, do qual são sócios pessoas como Roger Agnelli, FHC e Lula. Mudar essa situação e o futuro exige mais do que o personalismo de reis, com ou sem diploma. Precisa de um empenho nacional, exercido sob a mais cristalina luz do dia, à base do exercício indispensável em tais momentos: a inteligência.

Um dos corretivos pode vir através da atualização das compensações financeiras pela extração do minério aos padrões internacionais, que, no caso do ferro, são quatro vezes maiores na Austrália. Outro caminho será taxar e vincular os lucros da empresa a partir de certo limite desejável, ou tolerável, para que os recursos oriundos dessa reserva ou fundo sejam aplicados na agregação de valor e na manutenção no Brasil dos efeitos da atividade extrativista. Como está é que não pode mais continuar. A mudança, contudo, não pode ser apropriada por meia dúzia de poderosos, como parece ser o final desse enredo burlesco.


* Jornalista paraense. Publica o Jornal Pessoal (JP)
** na verdade, níquel

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