Thursday, 21 October 2010

Nosso Chile em Carajás


Por Lúcio Flávio Pinto, 20/10/2010

O maior avião cargueiro do mundo, o russo Ilyushin, pousou pela primeira vez no aeroporto de Belém, em 2007. Fretado pela antiga Companhia Vale do Rio Doce, transportava dezenas de pneus para caminhões Haulpak, conhecidos como “fora-de-estrada”, que estavam em falta no mercado internacional.

Essas máquinas são usadas pela empresa em Carajás, que é a maior província mineral do mundo, no sul do Pará. Com capacidade para 240 toneladas e com 13 metros de altura (equivalente a um prédio de quatro andares), o “fora-de-estrada” é o maior de todos os caminhões. Um deles, na madrugada do dia 28 de julho de 2007, passou sobre o corpo do auxiliar de serviços gerais Thiago Santos Cardozo, de 20 anos, morador de Marabá.

Entre três e quatro horas da madrugada, Thiago segurava um cabo elétrico, que transferia energia de um gerador para a área de operação de uma gigantesca escavadeira. Thiago não tinha lanterna nem rádio de comunicação, e a visibilidade era deficiente por falta de iluminação adequada.

A operação foi considerada, pelos fiscais do Ministério Público do Trabalho, “prática bastante arriscada e insegura”. Na perícia, eles estranharam que essa fosse a única atividade “não exercida por trabalhador” contratado diretamente pela Vale, “apesar da relação direta com o processo produtivo”. Embora de maior risco, foi transferida para um trabalhador terceirizado, muito jovem e provavelmente inexperiente.

Ao dar ré no caminhão, o operador não percebeu a presença de Thiago no local, onde ele não devia estar, e o esmagou. Só soube do acidente quando o motorista de uma pick-up, que estava no pátio de manobras, o avisou por rádio. Do alto da cabine da máquina, a visibilidade traseira é nenhuma. O operador manobra às cegas, sem contar sequer com câmeras ou iluminação própria do veículo. No registro policial, a morte foi classificada de “triste fatalidade”.

Foi o acidente de maior impacto em Carajás em 2007. Mas não o único. No ano anterior, José Pimentel Silva foi soterrado por 4,6 mil toneladas de minério de ferro. Ele estava dentro de um pequeno automóvel que dava manutenção para uma escavadeira quando um talude, 13 metros acima, desmoronou, menos de meia hora depois que um enorme trator de esteira D-11 começou a funcionar naquele ponto. A trepidação era intensa porque outras máquinas pesadas circulavam pelo mesmo local.

O risco de desmoronamento não constava do Plano de Prevenção de Riscos Ambientais elaborado pela Vale, que é obrigatório por lei. Apesar de tantas máquinas pesadas, não havia na área sinalização ou equipamentos de proteção coletiva. Mesmo assim a empresa, a segunda maior mineradora do mundo e a maior corporação privada do continente sul-americano, foi poupada de pagar a indenização de R$ 91,6 mil, a que a Justiça do Trabalho de Parauapebas a condenou. A instância superior reformou a sentença. Alegou que o espólio de José Pimentel não poderia reclamar dano moral por empregado morto, que ganhava R$ 305 por mês.

Naquele momento, 20 mil pessoas trabalhavam nas minas de Carajás, mas só 10% deles eram empregados da Vale. A empresa utilizava os serviços de 170 empreiteiros, terceirizando assim 90% da mão de obra. Nos 18 meses anteriores, a vara única da Justiça do Trabalho recebeu oito mil reclamações, obrigando o tribunal a criar uma segunda vara. As duas são as mais congestionadas do país.

Apesar de alguns ajustes, impostos pela fiscalização do governo, a Vale mantém um alto índice de terceirização, mesmo quando os contratados atuam em atividades-fim, que a empresa devia executar diretamente. É assim que pode apregoar índice zero de acidentes. Os que ocorrem são da responsabilidade dos empreiteiros.

Também porque as notícias ruins raramente escapam ao controle da empresa, notável por sua capacidade de fazer propaganda e relações públicas. Nem mesmo os paraenses se dão conta de que o estado já é o segundo maior minerador do país, com várias minas, onde trabalham algumas dezenas de milhares de trabalhadores.

Eles integravam o público estimado em um bilhão de pessoas em todo mundo, que acompanharam o resgate de 33 mineiros na mina de San José, no deserto de Atacama, no Chile. Mas certamente não como alguns milhares de pessoas, que fizeram esse acompanhamento com mais atenção aos detalhes. Além de estarem interessadas na sorte dos trabalhadores, que ficaram presos numa das galerias, a 700 metros de profundidade, essa pessoas tentavam aproveitar as lições da situação para usá-las em causa própria.

Foi o caso dos chineses. A cada ano, entre dois mil e três mil mineradores morrem nas lavras subterrâneas, não de cobre, como no Chile, maior produtor mundial do minério, mas de carvão mineral, que mantém em funcionamento as termelétricas, das quais saem 80% da energia consumida por 1,3 bilhão de habitantes da nação mais populosa da Terra. É muito mais do que a média de 30 a 50 mortes anuais que acontecem no Chile, na busca pelo cobre, produto responsável por 60% do comércio exterior do país. Dias depois, o mesmo número de mineiros salvos no Chile morreu soterrado na China, por vazamento de gás.

A conclusão geral é de que são precárias as condições de segurança nessa importante atividade econômica. O Chile nem assinou a convenção internacional da OIT sobre saúde e segurança na mineração. Por sorte, o acidente aconteceu numa grande mina organizada. Se fosse em alguma das minas informais, que funcionam à margem das mais elementares regras de operação, o final dificilmente seria feliz.

Mesmo o sucesso do salvamento dos mineiros de San José não conseguiu esconder a escandalosa precariedade do trabalho em minas. Um dos mineiros resgatados, mal saiu do buraco, fez a cobrança – direta e firme – ao presidente Sebastian Piñera, que o esperava com ares de salvador.

O episódio também podia ser observado com proveito no Pará, que já tem sete grandes minas em funcionamento, lavrando ferro, bauxita, manganês, cobre e níquel, todos produtos de exportação. Só que as minas paraenses apresentam diferença substancial em relação ao que ocorreu no Chile: são jazidas tão ricas à superfície que permitem a lavra a céu aberto, sem a necessidade de aprofundar a extração.

Os acidentes que ocorrem são escandalosos porque, na maioria dos casos, podiam ser evitados, com mais respeito e atenção às condições de trabalho. O que impressiona são as máquinas gigantescas, operadas com facilidade por trabalhadores bem treinados, graças aos recursos tecnológicos de que dispõem. Como esses equipamentos representam um alto investimento de capital e tecnologia, seus proprietários têm que resguardá-los através da melhor capacitação dos operadores. E de controle e supervisão superpostos.

Diante de tanta tecnologia, a frequência dos acidentes deve-se mais à negligência dos responsáveis pela programação das atividades e à excessiva – quando não indevida – terceirização e ao desrespeito aos direitos trabalhistas. Por isso, as duas juntas do trabalho de Parauapebas são das mais congestionadas do país.

A Companhia Vale do Rio Doce privatizada conseguiu mudar a relação que havia entre funcionários da estatal e os empregados das terceirizados: a posição destacada dos primeiros era cobiçada pelos segundos, cuja maior ambição era se tornarem contratados da CVRD.

Hoje, há empregados de nível inferior da Vale querendo passar para as empreiteiras, onde podem ganhar melhor, a despeito da insegurança na continuidade no emprego, pelo intenso turn-over (mal traduzindo, revezamento compulsório, imposto pelos interesses do patrão), pelo fato de que a demissão em juízo sai mais barato do que o respeito aos direitos trabalhistas desde o início e porque também é precária a estabilidade na principal firma contratante, a própria Vale.

Enquanto isso, a ex-estatal bate seguidos recordes de lucratividade, investimento e distribuição de resultados, tornando-se uma das empresas que mais distribui dividendos, favorecendo os detentores de ações preferenciais (eles não participam das decisões, mas são os primeiros a receber sua cota nos enormes lucros).

Parte dessa rentabilidade deve-se à eficiência da corporação, mas três fatores são fundamentais: a riqueza excepcional do minério de ferro de Carajás, o fato de ele estar localizado nas camadas mais superficiais do subsolo (possibilitando a lavra a céu aberto) e o crescimento exponencial do consumo da China (que também provocou a alta recorde dos preços do cobre, desencadeando uma corrida perigosa a todos os depósitos identificados no Chile, com sacrifício das condições de trabalho e de segurança).

Os paraenses são donos dos dois primeiros fatores, mas não são remunerados por essa condição na mesma medida em que os acionistas da Vale. Com um ônus tributário que equivale, hoje, a menos da metade da incidência de 1997, quando a estatal foi vendida, e uma compensação financeira irrisória, o Pará, de olho nas cenas emocionantes do resgate dos mineiros chilenos, podia tomá-lo como inspiração para cobrar seus direitos sobre o patrimônio tão valioso que são as suas minas. Antes que entre em operação a primeira em profundidade. Exatamente para extrair o cobre, como o Chile faz há muitas décadas. E enquanto as commodities vivem seu ciclo de alta.

Projetado originalmente para operar com até 25 milhões de toneladas anuais de minério de ferro, Carajás já atingiu 100 milhões de toneladas e em 2015 chegará a 230 milhões, mais da metade de toda produção nacional, que será recorde.

Diariamente, em nove viagens, o trem de Carajás, o maior trem de carga do mundo, com 330 vagões e quatro quilômetros de comprimento (logo terá mais 70 vagões), coloca 250 mil toneladas no porto da Ponta da Madeira, na ilha de São Luís, no litoral do Maranhão. Daí, o mais puro minério de ferro do mercado (com o dobro de hematita do minério australiano, seu mais próximo concorrente) segue para o mundo; 60% dele rumo à China e 20% para o Japão, os maiores compradores, a 20 mil quilômetros de distância.

Para que haja essa quantidade de minério em condições de embarque, máquinas e homens, em turnos sucessivos de trabalho, que se estendem sem intervalos pelo dia inteiro, movimentam um milhão de toneladas de terra e rocha todos os dias. A pressão gera tensão, que impõe sacrifícios aos trabalhadores e dá causa aos acidentes. Provavelmente eles são muito mais numerosos do que os registrados pela companhia e apontados pelo governo. A tragédia do Chile parece mais próxima do que os anônimos acidentes de Carajás.

No comments:

Post a Comment